A pele e a espessura do desenho – São Paulo – Brasil

AMÉLIE BOUVIER, NAZARENO, PAULO CLIMACHASKA, RENATO LEAL E SOFIA PIDWELL

 

Porquê o desenho? O desenho transporta o deleite pelo orgânico que acumula e subtrai unidades de vida das pessoas, atribuindo-lhe leveza e densidade, ao mesmo tempo. O desenho traz consigo, a substância do deleite, da desconstrução, da complexidade e do pensamento de autocrítica que solidifica a identidade em viagem, em estado de utopia…

 

 

Nos inícios do séc. XIX, um número significativo de pessoas “educadas” desenhava a partir da observação da natureza. Essa intenção, esse desejo cumpre um escopo primordial que persiste hoje: a pulsão em guardar imagens pequenas, detalhes; em cativar depois de perscrutar, de examinar, de pesquisar os aspetos mínimos dentro do imenso campo visual, de tudo o que está aí à procura de nós, ou seja, aquilo que existe em estado de pequenez, o que é bem menor e cabe ser evidenciado. Essa atitude do desenho que isola e fixa uma parte da multiplicidade do todo em estado de natureza, corresponde a um estado compulsivo para arquivar imagens que, depois do presente vivido, se convertem em memória psicoafectiva, equivalendo, hoje séc. XXI, ao que acontece quando se é impulsionado a fotografar no instante ou na duração algo – que esteja à nossa volta – com um dispositivo móvel, portátil e rápido, procurando registrar as excertos, partes do “mundo visível” que nos inunda em redor. Na realidade, significa e dá visibilidade a algo que é silencioso (e silenciado) no ver, algo que pode ser quase impercetível. Ao decidir, ao escolher esse “frame” do real natural, convertendo-o em imagem flutuante, está a dar-lhe voz visual, ainda que em breve se possa esquecê-la (ou não), pelo excesso que facilmente se acumula.

 

O conjunto de desenhos, os desenhos instalados e os murais desenhados que compõem esta exposição obedecem a uma concentração no essencial, traduzido nas partículas menores que contêm frações visuais e mentais do mundo de cada um dos cinco artistas.
O desenho chama o silêncio onde o vazio ironiza com o olhar descuidado da gente.
O desenho adquire feição e preenchimento.
O desenho povoa de forma subtil as frases, os gestos, a inclinação da cabeça que olha, soçobrando sobre si, para melhor enxergar o ínfimo, o transposto além do visto. Esse é o impulso para visitar a pele e espessura da composição “plana”, sob a tutela e substância do que está plasmado em desenho.
O desenho (o conjunto dos desenhos) que se vê, agora nesta mostra, tem uma história viajada, nómada que quer sedentarizar-se por algum tempo. Como todos nós, talvez, queremos demorar, durar, congelando um fragmento, um episódio de nossas vidas.

 

Em maio de 2013, quando de uma minha estadia mais prolongada em São Paulo, iniciaram-se as pesquisas, a convite de Renato Leal e Sofia Pidwell, para o que viria a ser a programação A pele e a espessura do desenho. Na ocasião, previram-se residências artísticas, intervenções de desenho in situ, a concretizar por 5 artistas portugueses e brasileiros: Amélie Bouvier (PRT), Nazareno (BR), Paulo Climachauska (BR), Renato Leal (BR) e Sofia Pidwell (PRT). Entre todos, coincide e se compartilha este projeto de itinerância centrado na essência, criação expandida de desenho. Anos atrás, quando da realização de uma mostra coletiva de desenho de artistas brasileiros e portugueses no Porto, lembrava a propósito como os desenhos tinham viajado de longe, para se reunirem, aglomerando cumplicidades boas e sabendo a missão em serem nómadas felizes, pois desejando rumos sem fim, agregando mundos atrás e em diante. Agora, por meio de A pele e espessura do desenho, tais consignações extravasaram e vestiram-se para a festa. As rotas introspetivas, que os autores nunca tomam como encerradas ou querendo obter uma plenitude finalizada, descansam, demoram-se e tornam-se instante de fruição para quem as queira decifrar no universo dos desenhos insuspeitos.

 

O calendário destas exposições foi inaugurado em Lisboa, na galeria principal da Fundação Portuguesa das Comunicações – PT, a 18 de maio 2015, agora se apresentando no SESC Ipiranga, quase um ano depois, agora sob um novo formato e provocando a presença de obras novas, feitas especificamente para os espaços do Sesc Ipiranga (SP). Conforme o agendado, seguirá para mais uma nova realização, regressando a Portugal, dessa vez, no Porto para a Casa-Museu Guerra Junqueiro, em finais de julho próximo – originando uma compilação de desenhos que testemunham as duas mostras inaugurais – de Lisboa e de São Paulo.
O vaivém entre as margens distantes do oceano se organiza nas muitas conversas desse conjunto de obras que mostra, nitidamente, afinidades e contrapontos entre os 5 autores, num diálogo registrado entre todos os protagonistas.

 

Ao longo destes quase três anos, entre Lisboa, Porto, São Paulo e Bruxelas, as estratégias decorreram, se definindo a partir de uma ideia configurada, quase e apenas, por um acaso feliz. Renato Leal descobriu – através do Facebook – a produção de desenho de Sofia Pidwell e o contato ficou. Por coincidência, estando em São Paulo, tive o gosto em aceitar a curadoria do projeto. Ao conhecer, em detalhe, as obras de Renato Leal e Sofia Pidwell, se tornou evidente para mim que as aproximações a mais outros 2 artistas brasileiros e 1 desenhista portuguesa de ascendência francesa, vivendo entre Lisboa, Bruxelas e Cracóvia. O projeto estava destinado a partilhar mundos e distâncias. A adesão ao projeto A pele e espessura do desenho por parte de Nazareno, Paulo Climachauska e Amélie Bouvier veio expandir e ramificar as consignações expressas no denominador comum entre os cinco.

 

Num primeiro momento assinale-se o que designei por “unidade/sinal” gráfico. A unidade/sinal gráfico privilegiada, residindo e predominando na produção dos 5 artistas, resultará de uma ação compulsiva que se traduz no acúmulo gráfico, progredindo na composição, em simultâneo, como parte e para o todo. Tal unidade – que é sinal evidenciador – consiste na representação gráfica de uma partícula ou célula, peculiares a Amélie Bouvier, Nazareno, Paulo Climachauska, Sofia Pidwell e Renato Leal. Mediante um exercício aplicado de Gestalt, a imagem percetiva se torna aproximatória, revelando afinidades eletivas (parafraseando Goethe) dos 5 desenhistas.

 

Num segundo momento veja-se a natureza, a composição, as ideias e circunstâncias desses sinais visuais em cada um dos artistas. As configurações, resultantes dos respetivos impulsos para o acúmulo de unidades ou, no caso de Paulo Climachauska a sua subtração, instituem uma nota volitiva que é comum, ainda que dirigida sob auspícios singulares. As afinidades formais, o que se vê e é visto nos desenhos, obtêm diversidade identitária atendendo às poéticas carateriais dos desenhos, revelando suas condições únicas. Também a relação ao espaço, que alberga e faz nascer os desenhos, revela sentidos e atitudes centrípetos e/ou centrífugos.

 

As obras, pensadas para esta mostra, experimentam diferentes técnicas, formatos e suportes, adequando-se ao espaço expositivo, procurando-lhe uma flexibilidade percecional e física. No caso da exposição em Lisboa, Amélie Bouvier, Sofia Pidwell e Nazareno produziram diretamente no espaço, demorando-se nas semanas que antecedem a inauguração. Assim, os 3 artistas induziram o público para pensar na [quase] efemeridade intrínseca da criação artística, plasmando sua generosidade e consciência da precariedade do ato, da vida humana e da obra que, essa sim, persistirá, não somente nos registros, mas na memória de todos que a vejam em estado de privilégio. É uma estética, de radicação antropológica, que revalida a condição primordial do desenho como matriz do humano, semente cultural transportando para atualidade a pregnância das forças pulsionais em cumplicidade ao pensamento crítico.

 

Para a edição em São Paulo, de novo Sofia Pidwell e Nazareno desenvolvem seus gestos de desenho paredes afora, associando-se a este impulso igualmente Renato Leal e Paulo Climachauska. Cada um possui a sua parede, única e própria, que é um muro sem fronteiras, antes abrigando afetos desenhados no tempo. Amélie Bouvier criou as suas composições, associando este objetivo, à produção concretizada durante a sua residência artística vivida em São Paulo, no Ateliê Fidalga, em outubro e novembro 2015.

 

As unidades gráficas de Amélie Bouvier possuem similitude a favos de uma colmeia; em Nazareno assemelham-se a escamas; em Renato Leal dominam círculos (quase estanques e fechados); em Sofia Pidwell presidem os semicírculos. Coincidem na razão do acumulo, propiciando uma expansão do desenho que alastra em compassos determinados e precisos.
Aparente similitude entre as 5 diretrizes gráficas reúne-se numa mostra onde, mais nitidamente se apercebem as correspondentes identidades, sem restringir as particularidades, antes expandindo-as ao agregar-lhes as sinergias desenvolvidas. Gera-se um cenário compósito, onde o visitante mergulha pela sinuosidade gráfica numa distensão morosa que revela o espaço em assimetrias, dissonâncias, tanto quanto em harmonias e proporções. Ritmos, intervalos e respirações convivem felizes. Acredita-se que, quer nas salas de exposição da Fundação Portuguesa das Comunicações, quer nos espaços do SESC Ipiranga, se estendem itinerâncias interiores, por assim as designar. Ou seja, que o visitante possa entranhar-se nos caminhos ramificados, densos, translúcidos, opacos e quase transparentes – consoante as malhas do desenho exprimem e descansam.
A atitude entranhada, de cada um dos artistas, oscila entre a concentração compulsiva e a demora exacerbada da acuidade visual (Amélie Bouvier), o primado da sensibilidade e intuição (Nazareno); a configuração de uma arquitetura conceitual decorrente da subtração sequenciada (Paulo Climachauska); a perceção do tempo (em duração) estendendo-se na concentração reclusa no ato (Renato Leal); a consciencialização corporal do pensamento e ato de desenhar para a uma genuína apropriação do espaço (Sofia Pidwell).

 

Entre o pensamento e a obra em si, circulam (porventura) nos 5 artistas a decisão de atingirem níveis do quase minúsculo, exigindo a si próprios cumplicidades feita de precisão, rigor e meticulosidade, atingindo a desejada praxis de desenhos dirigidos. Carateriza-se esta intencionalidade por evidências e conteúdos estéticos, denotativos do campo matemático e do geométrico. Aplica-se esta consignação a produtos cuja pele e espessura – linhas definidas e quase impercetíveis na superfície, direcionadas quer na vertical, quer na horizontal, quer na oblíqua – explicitando formatos singulares, às quais subjazem diretrizes diferenciadas. Sob desígnio predominante de iluminação, iluminam-se proporcionalidade, harmonia e organicidade. O que, curiosamente é pontuado por uma analogia evocadora das três vertentes dominantes da Estética Medieval, seguindo a tese difundida por Umberto Eco.

 

Porquê o desenho?

 

A primazia do desenho, no cenário artístico da atualidade, é um fato irrevogável de persistência e qualidade que contempla uma pluralidade de aceções e definições, todas elas dignas de menção. Celebra-se a convicção de que o desenho, cujo movimento é revelado pela assunção do traço, é sempre infindo e possível, simbolizando o seu movimento em qualidade introspetiva (como meio e técnica), assim como a transposição do homem na vida; revelando equilíbrio e estabilidade, significando proporção estética e conveniência ética. Talvez, porque desde sempre o escopo do humano reverberou, ecoou na convicção de uma intimidade lúcida e tateante, em sintonia e dissociação metódicas, tanto quanto pulsionais: “Drawing is often characterised as the most intimate art form.” [1]

 

Olhando a fisicalidade do espetador, na senda do que o artista igualmente coreografa, a aproximação física ao desenho, de modo a obter as melhores condições para observar os desenhos, direciona cada pessoa para uma intimidade psicoafectiva e motora que não se contenta em mimetismos. Não interessa o que seja o movimento, o gesto somente de quem o realizou, mas todas as ações estéticas que cada observador, cada visitante queira dinamizar. Tal dinamismo de proximidade, pode corresponder à exigência de afastamento físico, concordando com os formatos, as localizações, os obstáculos, entre o “si” das obras e o “si” de quem se privilegia, prestigia no ver. As dimensões e técnicas do desenho, os respetivos conteúdos iconográficos e semânticos determinam a pertença no espaço; a colocação, a postura, tudo aquilo que um corpo precisa para olhar, em detalhe e pormenor ou em distanciamento e perspetiva, enriquece qualquer um. O desenho implica, assim, uma ação pensativa (mas também instintiva) por parte do espetador, tornando-o protagonista de um ato de conhecimento singularizado no coletivo, na responsabilidade societária do artístico. O desenho constrói, por assim dizer, identidades diferenciadas perante uma mesma proposta gráfica. Ou seja, o desenho rege a constituição de uma linha de movimento do corpo do espetador, sua cativação, partilha e sequencialidade no ato de ver. [« J’ai découvert que dessiner n’était pas seulement/regarder, mais aussi toucher. » Jan Fabre] Neste sentido, “ver” um desenho será efetivamente “desenhar”, pelo movimento do corpo próprio (do espetador), um ato único de perceção visual. A atitude de cada um direciona, orientando os desígnios para entendimento e apropriação do desenho como pele, conteúdo ou aparência, entre outras supostas “modalidades de asserção”, exigindo ocultamento e/ou desvelamento de algo ou alguém, consoante os casos: “The paper becomes what we see through the lines, and yet remains itself.” [2]

 

Em Portugal, logo nos inícios do séc. XX, as ideias de Almada Negreiros (1893-1970) relativas ao desenho confirmaram-lhe a precedência entre as demais expressões artístico-visuais. O autor e artista português desses textos fragmentados de estética, compilados em volume sob título de Ver, convocou o desenho para explicitar a matemática, quanto a geometria sagrada da criação, assinalando a acuidade, evocando as lições advindas do pensamento (renascentista) de Francisco de Holanda (1517-1587) transmitido além-gerações no Tratado Da Pintura Antiga e que nos atinge:

 

“… o qual desenho, como digo, tem toda a sustancia e ossos da pintura, antes é a mesma pintura porque n’elle está ajuntado a idea ou invenção, a proporção ou symetria, o decoro[1] ou decencia, a graça e a venustidade, a compartição e a fermosura, das quaes é formada esta sciencia.”[2]

 

O desenho foi entendido como uma das realizações mais árduas ao homem: “…não ha hoje este dia debaxo das strellas cousa mais deficil e ardua que o desenhar.”[3] Arte profunda, a que maior engenho exigia, era, curiosamente, aquela de que se achava menos capaz, dada a sua complexidade, reconhecendo-a como a mais presente e necessária em tudo no mundo. Por outro lado, e lendo (também) a contemporaneidade, Tania Kovaks assinala que: “Drawing is often thought of as a very private activity, many drawings are made and never meant to be seen, erotic sketchbooks, exorcising, the night’s thoughts or demons.”[4]

 

O desenho, de forma simbólica, é o próprio homem quando os traços e as linhas do desenho que configuram o corpo, encerram em si “…o fim da arte porque a strimidade havia de cercar a si mesma e acabar em modo que prometa haver da outra banda outra cousa, e que mostre também aquilo que se esconde.”[5] A ideia que em Holanda configura a relevância do desenho, quanto às potencialidades intrínsecas que o constituem e pelas quais se expressa, surgindo por afinidade, quer em Leon-Battista Alberti, quer no próprio Leonardo da Vinci.[6]
Incidindo no processo que fundamenta a regimentar intrínseco do desenho, enquanto substância, verifica-se todavia quanto pode sofrer em transmutações, outorgando-se-lhe uma organicidade de unidades elementares (versus cosmogonia das linhas, dos traços e dos pontos): “The paper lends itself between the lines to becoming tree, stone, grass, water, cloud.” [7]
A composição é decidida passo a passo, acertada pela finalidade que o pensamento do artista decidiu e lhe permite, exatamente, a mudança, a alteração de rumo, o exercício de mover para trás, frente, lado esquerdo, lado direito, para cima e para baixo, seguindo os seis movimentos principais que León-Battista Alberti detetou para a representação que são suscetíveis de serem abstracionalizados.
Do antes enunciado, confirmar-se-á que em tempo de mutações e polissemias conceituais: “Drawing is simultaneously fundamental and peripherical, central and subsidiary.” [8]

 

O histórico remoto do desenho não invalida, antes vivifica (reitera) a sua pregnância na arte da atualidade, metaforicamente visível na famosa edição Vitamina D… Há que saber ultrapassar as circunstâncias restritivas, os estereótipos implícitos em modelos de ensino artístico, subvertendo-os e antecipando-os. Sendo que, então: “…Poderia dizer a prática do desenho como principio e fim da obra.” [9]

 

As duas exposições A pele e espessura do desenho geram complementaridades, entendendo-se por isso, a forma como cada um dos artistas selecionou os meios para concordar com o espaço nas suas entranhas ínfimas – sinuosidades de contorno e de ângulos, portas, paredes, tetos, muros, chão. Tudo propiciou que reagissem num tempo igualmente diferente, onde o fio dos dias traz novidades, ambiguidades e comprovações. Assim, as formas preenchidas pela perceção do espetador, cada um por si, num esforço de congregar em figurações as “coisas” desenhadas por contornos (mais ou menos cerrados), exploram géneros históricos na arte, tanto do desenho, quanto da pintura ou escultura. Entenda-se: as unidades gráficas servem os propósitos quaisquer que os desenhistas queiram plasmar. Sabem-nas passíveis de endireitar árvores, transpor nuvens e ondas grandes no mar, reorganizando elementos que integram as coisas da natureza, anunciando terra, água, fogo ou ar. Também aquelas linhas progressivas (ou regressivas) que direcionam os eixos arquiteturais de edificações imaginadas ou factuais – inteiras ou destituídas. São igualmente, sinais rápidos de seres reais, de híbridos: zoomorfias, antropomorfias e assim por diante. Movimentam-se, refletindo energias que se geometrizam e abstraem quase até ao despojamento semântico. Ou seja, mesmo que estejam a representar, ausentam significados previsíveis, para lograrem uma plataforma de desinteresse estético que Kant anunciaria como primordial estético. Ascendem a uma autonomia onde deixa de ser importante reconhecer a palavra ou frase do que é, para se mergulhar numa oscilação entre o apenas reconhecimento do sinal (unidade) gráfica e o direito ao entendimento pessoal, à interpretação que o artista tenha empurrado para o lado do espectador neste jogo plural.

 

Afinidade e razão presidem a uma efabulada organização dos desenhos dos cinco artistas, como se num ápice, os respetivos trabalhos se sobrepusessem e fizessem um todo compósito, onde as pessoalidades, todavia, continuassem percetíveis…induzindo a novas propostas, em devir. O fato das exposições já realizadas, e aquelas que se prevejam, cumprem um périplo que é irrepetível. Demonstram como se pode manter a fidelidade a um propósito conceitual, aqui subsumido a ser pele e espessura do desenho, todavia reinventando-se visceral e matemático. Habitualmente as exposições desenvolvem itinerâncias, viajando obras que se desafiam ao experimentar locais diferentes, por relação àqueles que as viram chegar. No caso deste programa, cabe a possibilidade, porque vinda da mais profunda vontade dos artistas, de criarem obras novas, configuradas sob um mesmo teto pensado. A necessidade das viagens destes desenhos, intervenções diretas in loco, in situ, exprime-se na convicção estética, e através da cumplicidade dos 5 artistas de 2 continentes que ao longo destes quase 3 anos regularmente comunicam entre si, pulando por cima do oceano que une mais do que divide – de Lisboa a São Paulo…muitas águas, nuvens e profundezas a delinear.

 

Maria de Fátima Lambert
SP junho 2013/LX maio 2015/janeiro 2016
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[1] Ian Berry and Jack Shear, « Introduction », Twice Drawn – Modern and contemporary Drawings in context, The Francis Young Tang Teaching Museum and Art Gallery at Skidmore College and Prestel Verlag, Munich, London, N.Y., 2011, p.9.
[2] John Berger, Twice Drawn – Modern and contemporary Drawings in context, The Francis Young Tang Teaching Museum and Art Gallery at Skidmore College and Prestel Verlag, Munich, London, N.Y., 2011, p. 182.
[3]A concepção de decoro provém de Cícero e Santo Agostinho, tendo sido igualmente tomada pelos árabes Avicena e Algazel, que a tomaram provavelmente dos gregos. Cf. Edgar de Bruyne, La Estetica de la Edad Media, Madrid, pp.39-41
[4]Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga, Capitolo XVI “Em que consiste a força da Pintura”, p.99. As qualidades, consideradas por Holanda, indispensáveis à boa pintura eram: a invenção, a proporção e o decoro. A aceção de Francisco de Holanda mostra afinidade à de Leon Battista-Alberti in De Pictura. Considere-se, ainda foi a abordagem de Lorenzo Ghiberti, Comentarii (1447) explicitando uma “Teori del disegno”, que lhe foi anterior, portanto.
[5]Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga, Capitolo XVI “Em que consiste a força da Pintura”, p.100
[6] Tania Kovats, “Traces of Thought and Intimacy”, The Drawing Book – a survey of drawing: the primary means of expression, p. 9
[7] John Berger, Twice Drawn – Modern and contemporary Drawings in context, The Francis Young Tang Teaching Museum and Art Gallery at Skidmore College and Prestel Verlag, Munich, London, N.Y., 2011, p. 182.
[8] Steve Garner (ed), Writing on Drawing – essays on practice and research, Bristol, Intellect Ltd., 2008, p.14
[9] Paulo Reis, “O Contracto do Desenhista”, texto para a exposição coletiva, Plataforma Revolver, Lisboa, 2008.
[10]”E em tanto ponho o desenho, que me atreverei a mostrar como tudo o que se faz em este mundo é desenhar; e fallando com os pimtores, tambem me atrevo a provar-lhes e fazer-lhes bom que val mais um só risco ou borrão dado pola mestria de um valente desenhador, que não ja uma pintura muito limpa e lisa e dourada e chea de muitas personagens feitas de incerta pintura e sem a gravidade do desenho.” Cf. Francisco de Holanda, Op. Cit., pp.100-101
[11] Vide Alberti in De Pictura, cf. pp.110 a 114, quando se referiu à importância da pintura, para o exercício das outras artes e indicando-lhe qualidades relacionadas aos domínios do desenho. Mas seria ao pensamento de Leonardo que mais se aproximava, segundo Angel González Garcia, vide notas à versão portuguesa. Cf. Francisco de Holanda, Op. Cit., p.101