Reflexos de uma paisagem em transparência
Museu Soares dos Reis, Porto
Sábado 25 novembro às 15.30h
Ciclo “ações estéticas quase instantâneas — parte 20”
SOFIA PIDWELL I REFLEXOS de uma PAISAGEM que TRANSPARECE
Apresentação da obra in situ – desenhos nos vidros das passagens – 1º andar
Curadoria Maria de Fátima Lambert
“Hoje eu desenho o cheiro das árvores.” “Entender é parede: procure ser uma árvore.” Manoel de Barros
Ver a paisagem através dos seus reflexos é um exercício de acuidade visual e, simultaneamente, um deleite de estação fora do lugar. As camélias apressam-se e a fonte do jardim interior do Museu adquire um aconchego, um regalo para olhar.
Ao longo de uma semana Sofia Pidwell “habitou” os dois cubículos envidraçados e simétricos das duas alas do primeiro piso do Museu . Intermedeia o jardim interior, onde as japoneiras florescem antecipadamente, mergulhadas as flores pesadas na fonte circular. É ou foi um verão tardio, extemporâneo , aquele que se vive(u) este presente ano, tendo alterado e apressado — em alguns casos – ritmos da natureza e vivencias de fauna, flora e gentes. Olhámos o jardim através dos vidros grandes das passagens — assim são designadas por tradição por aqueles que visitam e trabalham no Museu. Vemos a vegetação profusa e questionadora, que está do lado de fora das Sala s onde se desenrola a exposição permanente, como se fosse uma extensão de conteúdos iconográficos que povoam pinturas e, muito em particular, os biombos Nambam apresentados no segundo andar, no Núcleo dedicado às Artes [ditas] Decorativas. Essas configurações retorcidas, que se enredam sobre si mesmas, interrogam-se sobre a existência: sua Fortuna ou Erro, parafraseando Luís de Camões em seus sonetos.
As árvores desceram das suas representações transfiguradas nas narrativas dos Biombos Nambam, adquirindo uma autonomia, desinquietadas das vicissitudes dos protagonistas europeus e japoneses. Emanciparam-se da sua condição de fundo metafórico e simbólica, onde se agregavam e acentuavam os hábitos, rotinas e tradições contrapostas entre Oriente e Ocidente, para serem celebradas per se. Na cumplicidade entre elementos pictorializados nas paredes das Salas da Exposição e as evidências da natureza existente no Jardim Interior das Cameleiras/Japoneiras — tradição japonesa de novo a irromper no imaginário Ocidental, os troncos das árvores desenhados por Sofia Pidwell, conciliam culturas e estéticas diferenciadas, pois glorificam o que sejam imagens obcecantes — parafraseando Charles Mauron. Ou seja, elementos iconográficos que se veem, se identificam como recorrentes, neste caso não tanto em cada autor por si, mas nas práticas picturais, visuais tratadas na cronologia e na sincronia.
“Mas a paisagem move-se por dentro e por fora, encaminha-se do dia para a noite, vai de estação para estação, respira e é vulnerável. (…) A árvore da Carne.” Herberto Hélder.
Por um lado, certo é, que na obra de desenhos in situ, produzidos por Sofia Pidwell as formas se distendem em áreas, muito frequentemente de dimensões monumentais, evocando elementos da paisagem — entre céu, terra e ar. São os movimentos das ondas de Hokusai; são as revoluções que os ventos empurram sobre os humanos; são as ondulações topográficas de planícies, planaltos ou mesmo de montanhas fantasmáticas, de onde se vislumbra o sem fim do horizonte. Mas, também, são dinamismos gráficos de acumulo, onde as mínimas partículas das coisas — animadas ou inanimadas — se tomam como energias, como élan vital. As células invisíveis, de dentro do tronco das árvores, fixaram-se nas paredes de vidro das passagens outorgando-lhe novos significados potenciais. Como se a vida dos organismos vivos invadisse os territórios onde se pertencem as obras de arte, depois de seus autores delas terem prescindido, compartilhando-as com todos aqueles que ainda nem se sabe existirem…
“Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito da verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem.” Sophia de Mello-Breyner
A presença da artista, numa breve residência artística que permitiu a existência dos desenhos em simetria distanciada, propiciou uma incorporação do meio na sua alteridade combinatório – o dentro e o fora do museu. Identificou parcelas de telas contempladas, momentos do jardim olhados – tudo incorporando nas estruturas conduzidas de modo a propiciarem leituras complementares. Olhando de um lado para a ala oposta do Museu, através do Jardim que permeia, as linhas condutoras dos desenhos geram ilusões de continuidade, por camadas, em profundidade calculada, medida assim consignando situações visuais inesperadas e completas. À noite, com as luzes interiores e talvez numa lua em quarto crescente, os desenhos a verde adquirem uma volumetria densa, opaca, contrariando a ideia magna de uma paisagem, cujos reflexos concatenados, geram a sua própria transparência. Um enigma viso-conceitual que a Artista se aplica em quase todas as suas produções.
As árvores transportam significações, simbologias inúmeras que traduzem a genealogia da espécie humana, na sua condição mais familiar ou distendida. De Caspar David Friedrich a Corot, a Fox Talbot na fotografia, de Paul Klee a Pedro Calapez ou João Queiroz , a pregnância das árvores é uma existência, uma metáfora obcecante, de condição quase ontológica, para além de estética ou antropológica. As árvores jacentes erguem-se, pois a seiva e a fotossíntese artisticizadas assim o determinam, sob deliberação de Sofia Pidwell.
Recomenda-se que o visitante permaneça alguns minutos dentro das passagens e olhe dentro e fora para se privilegiar de uma vivência estética (Erlebnis) que é cúmplice de condição entropática (Einfühlung).
Assim, nesta solicitação à contemplação ativa, concretiza-se a 20ª intervenção no âmbito do Ciclo “ações estéticas quase instantâneas”, neste caso plasmando a condição efetiva e intencionalizada, a consciência demorada da Artista que sabe ter criado uma obra efémera, partilhada e sendo dádiva estética por demais.
Maria Fátima Lambert